quinta-feira, 23 de junho de 2011

SÃO DOMINGOS E A INQUISIÇÃO I


Um conhecido escritor agnóstico dizia que as cruzadas contra os albigenses e o extermínio dos focos heréticos no sul da França atrasaram de alguns séculos o advento do humanismo renascentista e da nova ordem de coisas que seria instaurada no mundo.

Maior elogio não poderia ser feito àqueles que, como São Domingos, contribuíram para livrar a Cristandade daquele flagelo.
É oportuno lembrar um aspecto freqüentemente deformado da personalidade do fundador da Ordem dos Pregadores, em cujos membros, ao aprovar a nova regra, o Papa Honório III, em palavras proféticas, entreviu "futuros atletas da fé e verdadeiros luzeiros do mundo".
Queremos nos referir ao aspecto combativo da vida desse insigne santo e ao apoio dado por ele e por seus filhos à Santa Sé na repressão das heresias, pois se acha neste concurso prestado pelo piedoso apóstolo do Rosário à defesa da Verdade a principal origem das incompreensões e das injustiças que sofre por parte de muitos de seus inimigos.

A apregoada "intolerância medieval"

Com efeito, não são poucos os adversários da Igreja que, movidos pela paixão e pelo sectarismo, fazem convergir em São Domingos toda a "intolerância medieval", nele vendo a figura sinistra do primeiro inquisidor, a mandar para a fogueira as "pobres vítimas da superstição", e que não lhe perdoam o fato de se colocar solidário com a cruzada organizada a pedido do Papa Inocêncio III contra os albigenses.

Mostrando assim os hereges como vítimas inocentes da violência dos católicos, e classificando como um crime os métodos inquisitoriais, esses detratores de São Domingos não somente deformam a personalidade do grande santo espanhol, mas sobretudo cobrem de injúrias a Igreja e a Ordem Dominicana, a primeira por ter sido a principal responsável pela criação desses tribunais, e a segunda pelo apoio decidido que deu a essa instituição no correr dos séculos.
Tão grande e generalizada tem sido esta campanha contra o Bem-aventurado fundador da Ordem dos Pregadores, que alguns autores católicos como o Pe. Lacordaire, impressionados com ela, procuraram defender São Domingos mediante o argumento de que ele nada teve que ver com a Inquisição.

Este método apologético, mesmo no caso de conseguir isentar São Domingos de qualquer compromisso com a Inquisição, tem a seu desfavor o fato de deixar pairando no ar as acusações que, paralelamente e no mesmo sentido, são feitas à Santa Igreja e à Ordem Dominicana, mas que constituíram os tesouros mais caros ao coração do grande patriarca.

Com efeito, três foram os elementos que cooperaram na obra da Inquisição: os Soberanos Pontífices, através dos inquisidores que eles tinham o hábito de nomear entre as Ordens que formam a milícia da Santa Sé na Idade Média — os dominicanos ou frades pregadores e os franciscanos ou frades menores; os bispos ou os ordinários dos lugares, diretamente ou por seus delegados; enfim, o poder civil, que punha à disposição da Igreja o braço secular, punindo a heresia como uma ameaça à segurança do Estado.

Vivendo em plena época do advento da Inquisição, tomando parte ativa e saliente no drama da heresia albigense, teria São Domingos se mostrado alheio às medidas tomadas pela Igreja para debelar aquele terrível incêndio? E será a santidade incompatível com o mister de inquisidor?

Defesa da civilização

Foi no Concílio de Latrão, de 1179, que Alexandre III promulgou o primeiro sistema completo de repressão que a Igreja haja imaginado contra a heresia. Ora, as medidas então adotadas visavam antes de tudo os hereges que, não contentes de professar opiniões heterodoxas, subvertiam a sociedade por suas violências e propagação de falsos princípios.

Nenhuma pessoa honesta e sensata pode deixar de aplaudir o Cânon 27 do Concílio Geral de Latrão, que consagrou a legítima defesa da civilização naquela época: "Estando os brabanções, aragoneses, navarros, bascos, coteraux e triaverdinos exercendo tão grandes crueldades sobre os cristãos, não respeitando nem igrejas nem mosteiros e não poupando viúvas, órfãos, velhos e crianças, não tendo consideração nem para a idade nem para o sexo, mas derrubando e devastando tudo como pagãos, ordenamos a todos os fiéis, pela remissão de seus pecados, que se oponham corajosamente a essas selvagerias e defendam os cristãos contra esses infelizes". São esses hereges acusados de exercer devastações nas regiões que ocupam, e se Alexandre III ordena contra eles uma cruzada, é para remediar grandes desastres, ut tantis claudibus re viribiliter opponant (Decreto de Gregório IX, v. VII, 8).

Doutrinas anti-sociais

Segundo Guiraud, que é um dos mais abalizados historiadores da Inquisição, o exame das doutrinas heterodoxas dos séculos XI e XII e a enumeração das perturbações que elas provocaram demonstra:
1) Que depois do ano mil a heresia deixa de ser uma opinião puramente teológica, destinada a ser discutida no recinto das escolas, mas se transforma cada vez mais em doutrinas anti-sociais e anárquicas, em oposição não somente com a ordem social da Idade Média, mas ainda com a ordem social de todos os tempos.
2) Que essas doutrinas anarquistas provocaram movimentos subversivos e perturbações profundas no seio do povo, e que assim a heresia que as informava se transformou num perigo público.
3) Que, desde então, a autoridade temporal teve tanto interesse quanto a autoridade espiritual em combater e em destruir a heresia.

4) Que essas duas autoridades, depois de haver agido separadamente durante muito tempo — o Estado pelas condenações de seus tribunais à forca e à fogueira, e a Igreja pela excomunhão e pelas censuras eclesiásticas — acabaram por unir seus esforços em uma ação comum contra a heresia.

5) Que essa ação conjunta inspirou as decisões do Concílio de Latrão em 1179 e do Concílio de Verona em 1184.

Eis, portanto, bem delineado o caráter da Inquisição, tal como foi estabelecido pelas Decretais de Alexandre III no Concílio de Latrão e de Lúcio III no Concílio de Verona. Podemos defini-la como um sistema de medidas repressivas, umas de caráter espiritual, outras de caráter temporal, promovidas simultaneamente pelo poder eclesiástico e pelo poder civil para a defesa da ortodoxia religiosa e da ordem social, ameaçadas igualmente pelas doutrinas teológicas e sociais da heresia (Jean Guiraud, "La Inquisition Médievale").

A Inquisição é de todos os tempos


Além das conjunturas históricas que deram origem à Inquisição, devemos pôr em relevo que essa instituição existe de modo natural e necessário, embora com nomes diferentes, em toda sociedade que deseja sua própria conservação. Como acentua Rohrbacher, toda sociedade, a menos que espose um liberalismo suicida, vigia e persegue aqueles que conspiram ou trabalham pela subversão de sua estrutura. As próprias constituições dos Estados modernos cominam penas para quem tentar derrubar a forma de governo existente, em geral a republicana.

Ora, a constituição da humanidade cristã se baseia nos princípios de que é guardiã e alma a Igreja Católica. Os povos vitalmente cristãos, impérios, reinos, repúblicas, são membros vivos dessa Igreja e vivem de sua vida. Lei fundamental da sociedade cristã — disso a que se dá o nome de Cristandade — tanto para a sua existência quanto para a sua conservação e aperfeiçoamento, é a lei católica. E se não há verdadeira civilização sem a verdadeira Religião, como diz Pio X, é claro que, defendendo a verdadeira Religião, os cristãos estão defendendo a própria causa da verdadeira civilização.

Estas verdades estavam arraigadas no espírito da sociedade medieval, sincera e coerentemente católica. Não passam, portanto, de pura declamação as acusações violentas que são freqüentemente dirigidas à Igreja a este propósito. Provam apenas a ignorância e a paixão de seus autores, que transformam em mártires da liberdade de pensamento os hereges que, por seu fanatismo, desencadearam as piores desordens na sociedade de seu tempo.

(Autor: José de Azeredo Santos, "Catolicismo" nº 8, agosto de 1951)



terça-feira, 14 de junho de 2011

O CAVALEIRO DE DEUS


Armadura de um Cavaleiro Templario


Mesmo com todo o esforço da Igreja não foi fácil e possível acabar com toda a violência, tão arraigada nas consciências destas épocas. Por isso a Igreja, com profunda sabedoria humana, recorreu a um segundo meio: "cristianizar o emprego da força": a força só é justa quando colocada a serviço da Justiça. E daí surgiu a "Cavalaria".

O Cavaleiro é o tipo mais característico da Idade Média; o guerreiro justo e reto, comprometido com a pureza, cujo fim último não é tanto a vitória, mas o sacrifício, o sangue oferecido. A figura original do Cavaleiro guerreiro veio das tribos germânicas, e a Igreja, com paciência, transformou a investidura militar em uma espécie de "sacramento" numa cerimonia solene onde se armava um cavaleiro. Ele era para a época como que a síntese do guerreiro e do Santo.

No ano mil esta era a oração que o sacerdote fazia pelo adolescente prestes a se tornar um guerreiro:
"Ouvi, Senhor, as nossas orações e abençoai com a vossa mão majestosa esta espada que o vosso servo deseja cingir para poder defender e proteger as igrejas, as viúvas, os órfãos e todos os servos de Deus contra a crueldade dos pagãos, e para amedrontar os traidores!" (DR, vol.II, p.315).

Assim descreve Daniel Rops:
"O cavaleiro era um soldado a cavalo, mas um homem de princípios morais que ele se comprometia por juramento a defender. Devia ser corajoso, nunca recuar, e enfrentar o inimigo onde que que os seus chefes mandassem. Enfim, era um homem de fé, que combatia por Deus e que entregava a vida e a morte em suas mãos. Era fiel ao seu chefe, rigoroso no cumprimento dos deveres, odiava a mentira e olhava de frente o inimigo. Era um fiel servidor da justiça, era caridoso, dedicado à proteção dos fracos, dos clérigos, das mulheres, das crianças, e era generosos com os subordinados e mesmo com os inimigos. Era um ideal admirável que hoje já não existe."

A entrada para a cavalaria era um cerimonial minucioso, um ritual místico que fazia o candidato a sentir a sua responsabilidade diante de Deus. Diante de 12 testemunhas, cavaleiros conhecidos com uma longa túnica branca, depois de uma noite de vigília e orações, após a Missa, eles eram investidos solenemente na “Ordem da Cavalaria”, e diante do altar prestava o seu juramento. Podia-se perder a cavalaria caso não se vivesse o seu juramento.

“Ninguém nasce cavaleiro”, dizia o provérbio, e mesmo os plebeus podiam ingressar na Cavalaria pela sua coragem e dedicação. Ele concede a nobreza, e o meio de entrar na nobreza sem título é ser feito cavaleiro. São Francisco de Assis aos 20 anos quis ser Cavaleiro. Na mentalidade cristã do povo dessa época, inebriada da “cultura da força”, vencer os infiéis e pagãos era a tarefa mais piedosa de todas. Nessa consciência cristã ainda rude, a ideia do sacrifício da vida oferecida a Deus, era o máximo. Os Cavaleiros de São João (Hospitaleiros), que deixaram na Europa a sua marca na história dos hospitais, desde 1080, ajudaram os pobres e os peregrinos que iam à Terra Santa. Com Godofredo de Bulhões esses hospitais cresceram de importância.
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Livro: ‘Uma história que não é contada’
Autor: Professor Felipe Aquino.
Paginas: 230 a 231.
Editora Cleofas.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

"Cardeal kurt Koch: "Bento XVI bem sabe..."



Apresentamos abaixo os principais excertos da conferência pronunciada pelo Cardeal Kurt Koch, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos,  no congresso Summorum Pontificum, em Roma, no último sábado, publicados no Osservatore Romano. Na mesma conferência, acrescenta Messa in Latino, o Cardeal se referiu jocosamente à mudança de posicionamento dos altares no pós-concílio: “Não ocorre que ninguém jamais tenha lamentado o fato de um motorista de ônibus olhar para a estrada e dar as costas aos passageiros!”.
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Do antigo rito, uma ponte para o Ecumenismo.

“Uma esperança para toda a Igreja” é o título do III congresso sobre o motu proprio Summorum Pontificum de Bento XVI que ocorreu hoje, sábado, 14 de maio, junto à Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino, do qual participaram, entre outros, o Cardeal Antônio Cañizares Llovera, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, o Cardeal Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e o Secretário da Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei”.



Cardeal Kurt Koch no Congresso Summorum Pontificum de 2011. Foto: Messa in Latino.
“A reforma da Liturgia não pode ser uma revolução. Essa deve tentar colher o verdadeiro sentido e a estrutura fundamental dos ritos transmitidos pela Tradição e, valorizando prudentemente o que já está presente, devendo-o desenvolver  ulteriormente de maneira orgânica, indo ao encontro das exigências pastorais de uma liturgia vital”. Com estas palavras iluminadoras, o grande liturgista Josef Andreas Jungmann comentou o artigo 23 da constituição sobre a sagrada Liturgia do Concílio Vaticano II, onde são indicados os ideais que “devem servir de critério para toda reforma litúrgica”e sobre os quais Jungmann disse: “São os mesmos que foram seguidos por todos aqueles que com acuidade pediram a renovação litúrgica”. Diversamente, o liturgista Emil Lengeling afirmou que a constituição do Concílio ensinou o “fim da idade media na Liturgia e operou uma revolução copernicana na compreensão e na práxis litúrgica”.
Eis aqui mencionadas as duas faces interpretativas e opostas, que constituem o ponto crucial da controvérsia desenvolvida em torno da Liturgia depois do Concílio Vaticano II: a reforma Litúrgica pós-conciliar deve ser tomada como “re-forma” no sentido de um retorno à forma originária e, portanto, como ulterior fase ao interior de um desenvolvimento orgânico da Liturgia, ou esta reforma vai entendida como uma ruptura com toda a tradição católica e mesmo a ruptura mais evidente que o Concílio tenha realizado, ou seja, como a criação de uma nova forma?
O fato que os padres conciliares entendessem a reforma somente no sentido da primeira afirmação foi mostrado profundamente por Alcuin Reid. Todavia, em amplos círculos no interior da Igreja Católica se impôs cada vez mais a segunda impostação, que vê na reforma litúrgica uma ruptura radical com a Tradição e quer mesmo promovê-la. Este desenvolvimento conduziu, na compreensão e na prática litúrgica, a novos dualismos.
É certo que o Motu próprio poderá dar passos avante no ecumenismo somente se as duas formas do único Rito Romano, nele mencionado, ou seja, a forma ordinária de 1970 e a extraordinária de 1962, não forem consideradas como uma antítese, mas como um mútuo enriquecimento.  Porque o problema ecumênico se encerra nesta questão hermenêutica fundamental.
Um primeiro dualismo afirma que antes do Concílio a Santa Missa era entendida sobretudo como sacrifício e que depois do Concílio ela foi redescoberta como ceia comum. No passado naturalmente se falou da Eucaristia como de um “sacrifício da Missa”. Hoje, porém, este aspecto não somente é menos conhecido, mas foi até mesmo deixado de lado ou simplesmente esquecido.
Nenhuma dimensão do mistério eucarístico se tornou tanto contestada depois do Concílio Vaticano II quanto a definição da Eucaristia como sacrifício, seja como sacrifício de Jesus Cristo, seja como sacrifício da Igreja, ao ponto que este conteúdo fundamental da fé católica acabe completamente no esquecimento. Contra tal dualismo, o  Catecismo da Igreja Católica mantém unido o que é indivisível: “A Missa é ao mesmo tempo e inseparavelmente o memorial do sacrifício no qual se perpetua o sacrifício da Cruz, e o sagrado banquete da comunhão no Corpo e Sangue do Senhor”.
Um ulterior dualismo em torno do qual tende a polarizar-se a visão de uma liturgia pré-conciliar e de uma pós-conciliar sustenta que, antes do Concílio, era somente o sacerdote o sujeito da liturgia, enquanto que depois do Concílio, a assembléia foi elevada ao papel de honra de sujeito da celebração litúrgica. É certo e indiscutível que, no curso da história, o papel originário de todos os fiéis como co-sujeitos da liturgia foi pouco a pouco diminuindo e que o ofício divino comunitário da Igreja Primitiva, no sentido de uma liturgia que via partícipe a inteira comunidade tenha assumido sempre mais o caráter de uma missa privada do clero. A existência de uma continuidade de fundo entre a liturgia antiga e a reforma litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II transparece da ampla e profunda visão da Constituição Litúrgica, segundo a qual o culto público e integral é exercitado “pelo Corpo Místico de Jesus Cristo, isto é, pela Cabeça e membros” e toda celebração litúrgica deve portanto ser considerada como “obra de Cristo Sacerdote e do seu corpo, que é a Igreja”. O Catecismo acrescenta depois: “alguns fiéis são ordenados mediante o sacramento da Ordem para representar Cristo como Cabeça do Corpo”.
À luz do primado cristológico deveria ser evidente que a liturgia cristã encontra o seu sentido mais profundo na glorificação e na adoração do Deus Trino e, portanto, na santificação dos homens. Também esta dimensão fundamental da liturgia se tronou vítima de um ulterior dualismo no Período pós-conciliar, ou seja, foi sempre mais absorvida pelo conceito de participação. Aqui se trata, porém, de uma falsa contraposição. Nós podemos e devemos comer o alimento eucarístico também com os olhos e penetrar assim no mistério eucarístico, a fim de que ele depois se revele plenamente no comer o Corpo do Senhor e beber seu Sangue. Mesmo Santo Agostinho gostava de sublinhar que ninguém deve comer “desta Carne” se antes não a adorou: “Nemo autem illam carnem manducat, nisi prius adoravit”.
Entre a liturgia antiga e a reforma pós-conciliar não há ruptura radical, mas uma continuidade de fundo. Somente sob essa luz é possível compreender o Motu próprio Summorum Pontificum do Papa Bento XVI. O Santo Padre não entende a história litúrgica como uma série de rupturas, mas como um processo orgânico de crescimento, de maturação e auto-purificação no qual, naturalmente, se podem verificar desenvolvimentos e progressos sem que continuidade e identidade sejam destruídas. Para o Papa, portanto, não pode haver uma contraposição entre a liturgia de 1962 e a liturgia reformada pós-conciliar. Em contraste com esta clara visão de desenvolvimento orgânico,  a reforma conciliar é considerada em amplos círculos da Igreja Católica como uma ruptura com a tradição e uma nova criação; essa gerou uma controvérsia sobre a liturgia que, vivida emocionalmente, continua ainda hoje a fazer-se ouvir. Com o motu próprio Summorum Pontificum, Papa Bento XVI quis contribuir à resolução de tal disputa e à reconciliação no interior da Igreja. O motu proprio promove, de fato, se assim se pode dizer, um “ecumenismo intra-católico”. Mas isto pressupõe que a antiga liturgia antiga seja entendida também como uma “ponte-ecumênica”. De fato, se o ecumenismo intra-católico falha, a controvérsia católica sobre a liturgia se estenderá também ao ecumenismo e a liturgia antiga não poderá desenvolver a sua função ecumênica de construir pontes.
Mesmo que o motu proprio queira favorecer a paz intra-eclesial, não seria justo vê-lo somente como uma concessão aos católicos que propendem à liturgia antiga, como a Fraternidade Sacerdotal São Pedro ou os seguidores do Arcebispo Marcel Lefebvre. O Papa Bento XVI está convicto que a forma extraordinária do rito romano seja um patrimônio precioso que não deve ser relegado ao passado, mas que deve ser acessível também no presente como no futuro,como sublinhou na carta que acompanhou o motu proprio: “Isto que para as gerações anteriores era sagrado, também para nós permanece sagrado, e não pode ser repentinamente totalmente proibido ou, mesmo, julgado como danoso. Nos faz bem a todos conservar as riquezas que cresceram na fé e da oração da Igreja, e lhes dar o justo lugar”.
Isto revela claramente qual é a intenção que anima o motu próprio. O Papa retém que hoje é indispensável um novo movimento litúrgico, que no passado ele definiu como uma “reforma da reforma” da liturgia. O Santo Padre, de fato, é do parecer que a reforma litúrgica pós-conciliar tenha trazido muitos frutos positivos, mas que também os desenvolvimentos litúrgicos do pós-Concílio apresentem também muitas zonas de sombra, devidas em grande parte ao fato que: “o conceito de mistério pascal do Concílio não foi suficientemente mantido presente”: “Se parou em demasia em muitos aspectos puramente práticos, correndo o risco de perder de vista o essencial”. Eis porque é licito perguntar-se, de modo crítico, se na reforma litúrgica pós-conciliar foram verdadeiramente realizados todos os desejos dos padres conciliares, ou se, sob diversos aspectos, as afirmações fundamentais da constituição sobre a sagrada liturgia permaneceram não cumpridas ou mesmo se, nos desenvolvimentos litúrgicos do pós-Concílio se tenha ido intencionalmente além de tais afirmações. Que seja não só legítimo mas também apropriado fazer uma distinção entre a constituição sobre a sagrada liturgia, a reforma litúrgica pós-conciliar e os sucessivos desenvolvimentos litúrgicos é provado pelo fato que os próprios Teólogos que se empenharam no movimento litúrgico ou que tinham participado nos trabalhos do Concílio se tornaram logo sérios críticos dos desenvolvimentos litúrgicos pós-conciliares.
A partir daqui transparece também o sentido mais profundo da reforma da reforma iniciada pelo Papa Bento XVI com o motu próprio: assim como o Concílio Vaticano II foi precedido por um movimento litúrgico, cujos frutos maduros foram levados para o seio da constituição sobre a sagrada liturgia, também hoje há necessidade de um novo movimento litúrgico, que se proponha como objetivo, o de fazer frutificar o verdadeiro patrimônio do Concílio Vaticano II na atual situação da Igreja, consolidando ao mesmo tempo, os fundamentos teológicos da liturgia. Para fazer isto é necessário não somente a revitalização do primado cristológico, da dimensão cósmica e do caráter latrêutico da liturgia, mas também, e sobretudo, a redescoberta do significado basilar do mistério pascal na celebração da liturgia cristã.
Deste novo movimento litúrgico, o motu proprio constitui somente o início. Bento XVI, de fato, bem sabe que, a longo termo, não podemos permanecer numa coexistência entre a forma ordinária e a forma extraordinária do rito romano, mas que a Igreja terá novamente necessidade no futuro de um rito comum. Todavia, porque uma nova reforma litúrgica não pode ser decidida sobre uma mesa de escritório, mas requer um processo de crescimento e de purificação, o Papa para o momento sublinha sobretudo que as duas formas do uso do rito romano podem e devem se enriquecer mutuamente. Ele indica também como: “Na celebração da missa segundo o missal de Paulo VI poderá manifestar-se, de maneira mais forte do que o é agora, aquela sacralidade que atrai muitos ao antigo uso. A garantia mais segura que o missal de Paulo VI possa unir as comunidades paroquiais e seja por eles amado consiste no celebrar com grande reverência em conformidade com as prescrições, o que torna visível a riqueza espiritual e a profundidade teológica deste missal”.
Aqueles que, ao contrário, refutam o postulado de um novo movimento litúrgico e vêem no motu próprio um passo atrás com respeito ao Vaticano II, verossimilmente entendem a reforma litúrgica pós-conciliar como um ponto de chegada, que deve ser defendido com todas as forças, segundo o rígido conservadorismo de muitos progressistas. Esses não somente não consideram os desenvolvimentos históricos da liturgia como um processo orgânico de crescimento e de maturação, mas rejeitam também a hermenêutica da reforma solicitada por Bento XVI para a interpretação do Concílio Vaticano II. Preferem, de fato, sustentar a hermenêutica da descontinuidade e da ruptura, considerada inadequada pelo Papa, aplicando-a, sobretudo, ao campo da liturgia e do ecumenismo. Também o decreto sobre o ecumenismo tem, de fato, assinalado um novo início nas relações entre a Igreja Católica, as Igrejas e as Comunidades eclesiais não católicas. Mas nem mesmo esta nova reviravolta ecumênica comportou uma ruptura com a tradição, como mostra o simples fato que não seria nunca possível se no período pré-conciliar não fossem já presentes, no seu estado embrionário, também no interior da Igreja Católica.
Aflora, assim, a real importância ecumênica do motu próprio Summorum Pontificum. Posto que Bento XVI não aplicou simplesmente a hermenêutica da reforma somente à liturgia, mas solicitou esta hermenêutica, em primeiro lugar, justamente, para a constituição conciliar sobre a sagrada liturgia. É precisamente neste campo que aparecem com clareza os dois diversos tipos de hermenêutica que podem ser seguidos: a hermenêutica da reforma, que toma consciência de desenvolvimentos e progressos, mas que vê uma continuidade de fundo com a tradição; ou a hermenêutica da descontinuidade e da ruptura, que contrapõe liturgia e portanto também a Igreja, pré-conciliar e a liturgia e a Igreja pós-conciliar e rescinde o ligame com a tradição. É justamente aqui que reside a questão fundamental para o futuro da Igreja Católica e, ao mesmo tempo, para a credibilidade do seu ecumenismo. Também neste sentido o motu proprio Summorum Pontificum se revela importante em nível ecumênico verdadeiramente sólido, somente se ele é, antes de tudo, percebido e recebido como “uma esperança para toda a Igreja”.
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Kurt Koch
Tradução: Pe. Samuel Pereira Viana, a quem agradecemos a gentileza.