Um conhecido escritor agnóstico dizia que as cruzadas contra os albigenses e o extermínio dos focos heréticos no sul da França atrasaram de alguns séculos o advento do humanismo renascentista e da nova ordem de coisas que seria instaurada no mundo.
Maior elogio não poderia ser feito àqueles que, como São Domingos, contribuíram para livrar a Cristandade daquele flagelo.
É oportuno lembrar um aspecto freqüentemente deformado da personalidade do fundador da Ordem dos Pregadores, em cujos membros, ao aprovar a nova regra, o Papa Honório III, em palavras proféticas, entreviu "futuros atletas da fé e verdadeiros luzeiros do mundo".
Queremos nos referir ao aspecto combativo da vida desse insigne santo e ao apoio dado por ele e por seus filhos à Santa Sé na repressão das heresias, pois se acha neste concurso prestado pelo piedoso apóstolo do Rosário à defesa da Verdade a principal origem das incompreensões e das injustiças que sofre por parte de muitos de seus inimigos.
A apregoada "intolerância medieval"
Com efeito, não são poucos os adversários da Igreja que, movidos pela paixão e pelo sectarismo, fazem convergir em São Domingos toda a "intolerância medieval", nele vendo a figura sinistra do primeiro inquisidor, a mandar para a fogueira as "pobres vítimas da superstição", e que não lhe perdoam o fato de se colocar solidário com a cruzada organizada a pedido do Papa Inocêncio III contra os albigenses.
Mostrando assim os hereges como vítimas inocentes da violência dos católicos, e classificando como um crime os métodos inquisitoriais, esses detratores de São Domingos não somente deformam a personalidade do grande santo espanhol, mas sobretudo cobrem de injúrias a Igreja e a Ordem Dominicana, a primeira por ter sido a principal responsável pela criação desses tribunais, e a segunda pelo apoio decidido que deu a essa instituição no correr dos séculos.
Tão grande e generalizada tem sido esta campanha contra o Bem-aventurado fundador da Ordem dos Pregadores, que alguns autores católicos como o Pe. Lacordaire, impressionados com ela, procuraram defender São Domingos mediante o argumento de que ele nada teve que ver com a Inquisição.
Este método apologético, mesmo no caso de conseguir isentar São Domingos de qualquer compromisso com a Inquisição, tem a seu desfavor o fato de deixar pairando no ar as acusações que, paralelamente e no mesmo sentido, são feitas à Santa Igreja e à Ordem Dominicana, mas que constituíram os tesouros mais caros ao coração do grande patriarca.
Com efeito, três foram os elementos que cooperaram na obra da Inquisição: os Soberanos Pontífices, através dos inquisidores que eles tinham o hábito de nomear entre as Ordens que formam a milícia da Santa Sé na Idade Média — os dominicanos ou frades pregadores e os franciscanos ou frades menores; os bispos ou os ordinários dos lugares, diretamente ou por seus delegados; enfim, o poder civil, que punha à disposição da Igreja o braço secular, punindo a heresia como uma ameaça à segurança do Estado.
Vivendo em plena época do advento da Inquisição, tomando parte ativa e saliente no drama da heresia albigense, teria São Domingos se mostrado alheio às medidas tomadas pela Igreja para debelar aquele terrível incêndio? E será a santidade incompatível com o mister de inquisidor?
Defesa da civilização
Foi no Concílio de Latrão, de 1179, que Alexandre III promulgou o primeiro sistema completo de repressão que a Igreja haja imaginado contra a heresia. Ora, as medidas então adotadas visavam antes de tudo os hereges que, não contentes de professar opiniões heterodoxas, subvertiam a sociedade por suas violências e propagação de falsos princípios.
Nenhuma pessoa honesta e sensata pode deixar de aplaudir o Cânon 27 do Concílio Geral de Latrão, que consagrou a legítima defesa da civilização naquela época: "Estando os brabanções, aragoneses, navarros, bascos, coteraux e triaverdinos exercendo tão grandes crueldades sobre os cristãos, não respeitando nem igrejas nem mosteiros e não poupando viúvas, órfãos, velhos e crianças, não tendo consideração nem para a idade nem para o sexo, mas derrubando e devastando tudo como pagãos, ordenamos a todos os fiéis, pela remissão de seus pecados, que se oponham corajosamente a essas selvagerias e defendam os cristãos contra esses infelizes". São esses hereges acusados de exercer devastações nas regiões que ocupam, e se Alexandre III ordena contra eles uma cruzada, é para remediar grandes desastres, ut tantis claudibus re viribiliter opponant (Decreto de Gregório IX, v. VII, 8).
Doutrinas anti-sociais
Segundo Guiraud, que é um dos mais abalizados historiadores da Inquisição, o exame das doutrinas heterodoxas dos séculos XI e XII e a enumeração das perturbações que elas provocaram demonstra:
1) Que depois do ano mil a heresia deixa de ser uma opinião puramente teológica, destinada a ser discutida no recinto das escolas, mas se transforma cada vez mais em doutrinas anti-sociais e anárquicas, em oposição não somente com a ordem social da Idade Média, mas ainda com a ordem social de todos os tempos.
2) Que essas doutrinas anarquistas provocaram movimentos subversivos e perturbações profundas no seio do povo, e que assim a heresia que as informava se transformou num perigo público.
3) Que, desde então, a autoridade temporal teve tanto interesse quanto a autoridade espiritual em combater e em destruir a heresia.
4) Que essas duas autoridades, depois de haver agido separadamente durante muito tempo — o Estado pelas condenações de seus tribunais à forca e à fogueira, e a Igreja pela excomunhão e pelas censuras eclesiásticas — acabaram por unir seus esforços em uma ação comum contra a heresia.
5) Que essa ação conjunta inspirou as decisões do Concílio de Latrão em 1179 e do Concílio de Verona em 1184.
Eis, portanto, bem delineado o caráter da Inquisição, tal como foi estabelecido pelas Decretais de Alexandre III no Concílio de Latrão e de Lúcio III no Concílio de Verona. Podemos defini-la como um sistema de medidas repressivas, umas de caráter espiritual, outras de caráter temporal, promovidas simultaneamente pelo poder eclesiástico e pelo poder civil para a defesa da ortodoxia religiosa e da ordem social, ameaçadas igualmente pelas doutrinas teológicas e sociais da heresia (Jean Guiraud, "La Inquisition Médievale").
A Inquisição é de todos os tempos
Ora, a constituição da humanidade cristã se baseia nos princípios de que é guardiã e alma a Igreja Católica. Os povos vitalmente cristãos, impérios, reinos, repúblicas, são membros vivos dessa Igreja e vivem de sua vida. Lei fundamental da sociedade cristã — disso a que se dá o nome de Cristandade — tanto para a sua existência quanto para a sua conservação e aperfeiçoamento, é a lei católica. E se não há verdadeira civilização sem a verdadeira Religião, como diz Pio X, é claro que, defendendo a verdadeira Religião, os cristãos estão defendendo a própria causa da verdadeira civilização.
Estas verdades estavam arraigadas no espírito da sociedade medieval, sincera e coerentemente católica. Não passam, portanto, de pura declamação as acusações violentas que são freqüentemente dirigidas à Igreja a este propósito. Provam apenas a ignorância e a paixão de seus autores, que transformam em mártires da liberdade de pensamento os hereges que, por seu fanatismo, desencadearam as piores desordens na sociedade de seu tempo.
(Autor: José de Azeredo Santos, "Catolicismo" nº 8, agosto de 1951)